quinta-feira, 23 de julho de 2020

Crônica do Dia: Nazareno Tourinho, um cristão que sonhava com igualdade

A partir de hoje publicarei aqui rotineiramente as crônicas do professor e jornalista João Carlos Pereira, uma de nossas unanimidades regionais no ramo das letras, tanto no magistério e no jornalismo, quanto na criação literária. Creio que seu nome e sua biografia dispensam apresentações; portanto, boa leitura a todos e todas.

 

O nome de Nazareno Tourinho voltou aos meus ouvidos e ao meu coração de uma forma intensa e doce, nos últimos tempos. Sempre que conversava com Betânia Fidalgo, recém-eleita para a cadeira que pertenceu ao amigo, na Academia Paraense de Letras, falávamos dele. Muitas vezes descrevi o Nazareno que conheci como se fosse um parente próximo e querido. Um parente espiritual, porque ele acreditava, ou melhor, tinha certeza, de que isso era possível. Um consanguíneo etéreo. Uma criatura que, em si mesma, experimentava a espiritualização da carne e a carnalização do espírito. Não por acaso eu dizia que era um barroco em plena definição.

Além da amizade, duas outras dívidas, ambas impagáveis, contraí com ele. A primeira surgiu, quando passou por Belém um médium (creio que não foi o João de Deus), que recebia uma entidade alemã, Dr. Fritz, salvo engano, responsável por curas extraordinárias. Nazareno passou em casa e levou meu pai para uma consulta, na tentativa de reverter-lhe a cegueira que o acompanhou, por livre deliberação, até o final da vida. Papai acreditava que se tratava de um problema cármico, porque, segundo assegurava, em encarnações anteriores comprazia-se sem queimar as vistas de escravos fujões, para que nunca mais buscassem a liberdade. Antes de voltar a este mundo, na forma de Joel Pereira, pediu para ser penalizado com o mesmo castigo que impingia aos seus negros. Foi atendido. Na maternidade, queimaram-lhe os olhos com nitrato de prata pingado em excesso. Eu queria tanto acreditar nisso, meu Deus... Como a consulta demorasse, levantou-se e foi embora. Mau pai era um homem impaciente e não suportava esperar.

No dia seguinte, Nazareno não se deu por vencido. Voltou em casa e praticamente o arrastou para o local das curas. Desta vez, o alemão o recebeu. Disse que não tocaria em seus olhos, porque ali havia um carma, mas assegurou que o coração estava fraco. Pegou o bisturi e rasgou-lhe o peito para desobstruir as artérias. Rezou, fechou a fenda e a cobriu com emplastro Sabiá. Avisou que o estrago era grande, mas que a cicatriz sumiria. Papai, que andava triste, pálido, alquebrado, ganhou cor, ficou ereto e parecia outro homem. Até Paulo Toscano, o cardiologista, ficou surpreso.

Seis meses depois, um infarto fulminante o levou. Eu também tenho uma cicatriz imensa no meio do peito e sei como é complicado desentupir artérias do coração. Corta pela, carne e músculo e serra-se osso até chegar ao coração. Depois costura-se tudo ( o osso é grudado com fio de aço) e a recuperação é lenta e dolorosa. Como alguém pode fazer isso com bisturi, sem anestesia, sobre uma maca, cercado de gente respirando em cima do doente, sem oxigênio, sem nada? A sobrevida de seis meses de meu pai foi a primeira dívida.

A segunda foi a acolhida que me deu, quando me candidatei à APL. O crivo do Nazareno para eleger alguém era finíssimo. Pois uma noite ele me chamou à sua casa, na Tamandaré, votou em mim, na minha frente, me entregou o envelope, me deu um abraço e disse que raramente fazia aquilo. Tive 28, dos 32 votos possíveis.

Apesar do abismo entre nossas crenças, nos queríamos muito bem. Eu o admirava e o respeitava por sua coerência humanizada. Nazareno Tourinho possuía apenas um farol: era Jesus Cristo, em quem enxergava a justiça, o amor, a tolerância, a caridade e a humanidade encarnadas. O espiritismo não era um escudo atrás do qual se ocultava. Era a roupa que vestia para encarar a vida com honestidade.

Intelectual que escrevia para teatro e ganhava prêmios mundo a fora, também produzia literatura a respeito de sua fé. Os espíritos, às vezes, o despertavam à noite para sugerir-lhe uma idéia, mas nunca se valeram de seus dons para ditar alguma coisa. O que ele escrevia, ele assinava.

Se havia alguma coisa de que Nazareno Tourinho não gosta era de elogio. Sempre que alguém destacava seus méritos na literatura, balançava as mãos com longos dedos, como se dissesse: para com isso. Também baixava os olhos e retomava a conversa, buscando apontar, na própria obra, elementos que a justificassem. Se recusava os aplausos, gostava de justiça e sabia que o teatro que produziu, em mais de seis décadas, tinha valor. Quando era reconhecido, nesse aspecto, ficava feliz.

Nazareno Tourinho foi, essencialmente, um homem bom. Muito bom. Cristão como pouca gente ousa ser, parecia andar sobre as pegadas de Jesus e fazia esse caminho de modo silencioso. Talvez pudesse ser chamado de Nazareno “bondade” Tourinho. Como se tivesse ouvido do próprio Cristo as lições de amor ao próximo, se aproximou da doutrina Espírita ainda muito jovem, quando conheceu um operário que lia Allan Kardec, e criou casas onde era havia teoria e prática do amor ao próximo, sobretudo ao próximo mais necessitado. Nos seus centros espíritas, o Evangelho ganhava forma, vida, densidade e luz. Nazareno foi um apóstolo na modernidade. Que o digam os pobres para os quais preparava lauta ceia de Natal. “Eles só comem peru uma vez por ano.Se sobrar, nós comemos depois.”

O rapaz que, aos 20 anos, decidiu ganhar o mundo, a partir do Rio de Janeiro, não suportou a vida na então capital do país, que o presenteou com uma doença pulmonar. De volta a Belém, ficou curado sem necessidade de remédios ou de tratamentos. Simplesmente curou-se. Aos 35 anos, entrou para a Academia Paraense de Letras, onde era querido e respeitado. Mesmo quando botava para quebrar. Mas sabia muito bem a diferença entre estar na APL ou no Bar do Parque, um lugar que adorava, sobretudo quando Ruy Barata estava lá. Entre os dois havia uma afinidade tão grande, que a morte do poeta não desfez. Segundo me disse, Ruy o visitou em sonho algumas vezes. Sonhar é uma coisa. Ser visitado é outra. Se alguém desejar saber a diferença, a pessoa menos indicada para explicar sou eu.

Se era para desfazer paradigmas, chamassem Nazareno Tourinho. O espírita progressista e lúcido casou-se com uma jovem, ligeiramente mais velha do que ele, de família judia, dona de lindos olhos verdes e senhora de muita simpatia. Com dona Miryan Zagury teve três filhos: Helena Emmanuel e Tânia Regina. Em 64, o regime militar fez sentir o peso da censura sobre suas peças e não o deixou em paz. Nazareno resistiu. O autodidatismo e a busca pelo conhecimento fizeram dele um sábio, que não aceitava nada sem poleminzar. Nem os princípios de sua crença. Era um teórico do Espiritismo. No catolicismo, os que fizeram como Nazareno ganharam o título de “doutor” da Igreja. Agostinho, Tomás de Aquino, João da Cruz, Antônio, Terezinha de Jesus, Catarina de Sena e Tereza d´Ávila e mais outros 29 santos mereceram o título, em 2000 anos de história.

Contestador por natureza, estava sempre disposto a levantar questões em nome das causas em que acreditava. Não suportava o que chamava de burguesia, embora, no final da vida, já estivesse mais tolerante. Inflado pelas convicções, chegou a propor, na juventude, a demolição do Theatro da Paz para que, naquele lugar, fosse construído um teatro mais simples, onde os pobres pudessem entrar. Ele acreditava que todos tinham direito ao melhor da vida e lutava por isso. Seu teatro era engajado e politicamente à esquerda, porque ele mesmo era contrário a todo tipo de sistema que oprimisse o homem.

Rigoroso intelectualmente, homem de muita leitura, não fazia concessões à mediocridade e sabia distinguir o que era bom do que era mais ou menos. Na vida real, reconhecia espaço para todos. No mundo da literatura, porém, era seletivo e radical. Por isso, quando havia eleições para a Academia Paraense de Letras, seu voto era sempre uma incógnita. Se algum candidato conseguia sua aprovação, podia se considerar um autor de méritos, porque ele não votava por amizade ou para atender ao pedido de um amigo. Seu voto era um troféu. Valia por uma consagração.

A pessoa que sonhava com um mundo melhor era um sujeito de quase um metro e noventa, magro, fumante, que andava curvado, sentindo o peso da idade e da doença que o consumia, mas não o derrotou. Morreu a dois meses de completar 85 anos. Tinha as feições longilíneas, cavadas e conversava pausadamente. Diante de um microfone, exaltava-se. Inflamava-se por justiça e por amor a Cristo. Sua voz era forte, grossa e a fala tinha o ritmo pausado. Quem quiser ouvir Nazareno tourinho, preste atenção em qualquer fala de seu filho, Emmanuel Zagury Tourinho, um dos melhores reitores que a Universidade Federal do Pará já teve. Tão bom, que acaba de ser reeleito para outro mandato. É muito igual.

No final da vida, foi perdendo a audição, mas nem por isso deixava de falar com os amigos por telefone. Quando a comunicação ficava impossível, alguém ao seu lado escutava e transmitia a mensagem. Ele retomava o aparelho e conversava como se tivesse escutado. A caixa de óculos presa ao cinto era sua marca registrada. No dia em que era preciso submeter-se à sessão de quimioterapia, sabia que poderia sofrer, mas, estranhamente, resistia. Uma vez, fui visitá-lo nos chamados “covões de São Brás”. onde morava, antes de se mudar para o bairro do Guamá, sem adivinhar que passara a tarde no hospital “Ophir Loiola”. No final do encontro, me disse: “acreditas que fiz químio? Eu não sinto nada, João. Não sei como isso acontece. Todo mundo reclama, mas eu não”.

Em 2014, recebeu uma grande homenagem da Academia Paraense de Letras, por ocasião da passagem de seus 80 anos. É a homenagem da casa aos seus membros mais longevos. Ao ser informado que haveria uma sessão especial só para ele, me pediu para ser o orador e eu aceitei a missão como um presente. Nazareno e eu éramos amigos de longo tempo. Ela sabia de minha estreita ligação com o catolicismo e respeitava. Como Chico Xavier, era grato à religião católica, porque reconhecia que, sem ela, não teríamos conhecido Jesus Cristo. Pouca gente tão cristã eu já encontrei como Nazareno Tourinho. Mais do que ele, difícil. Lutava por um mundo melhor para todos, mantendo os pés firmes, nas lutas do seu tempo, mas trazia os olhos voltados para Deus. Quando falávamos sobre a salvação das almas, baixava o tom da voz e quase segredava: “João, ninguém vai deixar de ser salvo. Ninguém”.

Em 19 de outubro de 2018, cansado de guerra, pode, enfim, repousar. Pelo bem que praticou, deve ter sido recebido com festas, eu diria, no céu. Ele reagiria, consertando: no plano espiritual. Onde quer que esteja, com certeza continua gerando polêmicas. Se não for assim, não será Nazareno Tourinho.



João Carlos Pereira

jcparis1959@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário