Por João Carlos Pereira
A primeira vez que o vi foi em 1982. Ele vinha agoniado, em cima da hora para a aula de Cultura Brasileira, na Universidade. Alguém havia me prevenido que o homem era doido. Se quisessem que tivesse um ataque, uma crise no meio da sala, bastava arrastar a carteira no chão. O atrito do pé de ferro sobre a lajota o tiraria do sério. Meu cuidado era para não despertar nele a fera agoniado, invocar uma entidade enfezada. Mas a aula era tão boa, tão envolvente, que eu não conseguia ver nele o menor traço de alucinação. Sua fala apaixonada nos envolvia e a turma babava por seu enorme conhecimento.
Semanas se passaram, até que uma pessoa, doida para ver o circo pegar fogo, deliberadamente arrastou a carteira. José Ubiratan Rosário, a quem passei a tratar de Bira, porque tomávamos o mesmo ônibus e íamos conversando, não se atacou. Não pegou santo. Não virou bicho. Educadamente, disse que preferia que o aluno levantasse a cadeira. Era mais gentil. O mito estava desfeito.
Depois que as aulas acabaram, eu sempre passava por sua sala e lá estava ele, encantando os alunos. Tinha orgulho de ser professor e professor da Universidade. Nos reencontramos em Santarém, nas temporadas de interiorização. Não ficava com os outros professores no alojamento, onde o silêncio era raridade. Preferia a calma de seu hotelzinho, do qual, dizia, podia ver as estrelas pelos buracos do telhado. Foi ele quem me apresentou a música de Wilson Fonseca, que chamava “música de Santarém”. Nossa amizade solidificou-se diante do Tapajós.
O homem que amava ser professor, também escrevia sobre a Amazônia. Quando ganhou um prêmio da Academia Brasileira de Letras, sobre Belém, salvo engano, valorizou muito mais a presença e o discurso de Alceu Amoroso Lima para entregar-lhe a honraria do que a própria distinção. “Foi a última aparição dele em público”, gabava-se. Quando me candidatei a uma cadeira na Academia Paraense de Letras, abriu uma exceção para votar em mim. Por princípio, ninguém com menos de 50 anos deveria se candidatar. Na época, eu ainda ia fazer 42. Era um bebê.
Convivemos mais na Academia do que na Universidade. Ele não faltava nunca e engrandecia os debates com sua cultura universal. Ao morrer, com 71 anos, no dia 24 de outubro de 2009, não apenas não abriu apenas um vazio no coração da APL, onde ocupava a cadeira 28, como revelou, aos olhos da cidade, pelo caminho da ausência, a dimensão de sua importância. Eu gostava tanto dele que, quando o Pedro, secretário da Academia, ligou para avisar de sua morte, experimentei duas sensações: a de imensa tristeza, seguida de uma grande raiva. Raiva da morte. Raiva por ele haver partido. Diante de seu caixão, olhava para aquela cara, que parecia estar sorrindo, e perguntava: por que tu morreste, rapaz? Por que tu, logo tu, foste morrer? O sorriso era a resposta. Pudesse falar, diria: “morrer é nosso destino, João”.
Ubiratan – ou Bira - pertencia a uma rara – quase extinta – categoria de professores, cuja universalidade do saber o transformou em um ser humano especial, diferente. Unindo a sabedoria acadêmica a uma imensa simplicidade, conseguia um feito raro: mostrava a face alegre do conhecimento, sem precisar dizer que sabia. Simplesmente sabia.
Entre suas muitas qualidades, a de ser fiel à religião que abraçara talvez fosse a mais evidente. Católico fervoroso, nem sempre se contentava com as explicações que ouvia. Quando a razão não permitia o total entendimento de algum tema, depois de mergulhar nos textos fundamentais do cristianismo, rezava. E como rezava. Para exercitar a fé, alternava a sequência da “Ave, Maria” no santo terço. Começava em português, passava para italiano, avançava em francês ou inglês, alternava uma dezena em grego ou em russo. O “Pai Nosso” era recitado em aramaico, tal como Jesus o havia pronunciado.
Todos que tinham o privilégio de conversar sobre religião com José Ubiratan Rosário saiam com sensação de que haviam encontrado um sábio que dialogava com Deus. Se o assunto fosse outro, a idéia era a de que estávamos diante de um erudito, que tinha o dom de simplificar e não de complicar. Com ele, o saber ganhava sabor. Dava gosto vê-lo com as mãos cruzadas sobre a barriga e rezar uma “Ave, Maria” em russo. Caprichava no sotaque e abusava dos sons mais fortes. No céu, os santos deviam ficar confusos com tanto trancelê de idiomas. Imagino que as barreiras linguísticas se desfaçam, quando a palavra paira por sobre os telhados, antes mesmo de alcançar as nuvens. O caráter universal da verdadeira Igreja de Cristo reside, também, na pluralidade de idiomas em que suas orações são ditas todo dia, milhões de vezes, ao redor do mundo. Mas quando uma mesma criatura embaralha a reza, a situação se complica.
O homem sábio e cheio de fé era também uma pessoa do povo. Ele adorava as manifestações folclóricas e buscava no mais amplo conceito de cultura o guarda-chuva que abrigasse a expressão da busca de beleza nascida da criatividade popular. Era uma satisfação ouvi-lo explicar as origens desta ou daquela manifestação, bem como recuperar, no viés da história, fatos, datas e personagens que ajudavam a sedimentar a nacionalidade brasileira. Na voz do Bira, o tempo e os fatos se acomodavam de tal forma, que era possível entender o mundo no espaço de uma aula ou de uma disciplina que ministrasse.
A cultura de Ubiratan Rosário faz muita falta nesta época rasa e vulgar. Na Academia, sentávamos em bancadas diferentes: ele, na da esquerda de quem entra no plenário, e eu, na da direita. Nossas cadeiras estavam colocadas quase que uma diante da outra. Muitas vezes, nos anos que lá estou, nos comunicávamos com olhares, gestos e até bilhetes. Ao final das sessões, sobretudo das solenes, sempre ficávamos conversando. Quanto eu aprendi naqueles encontros festivos, que acabam se transformando em grandes aulas, já sem o medo que alguém arrastasse uma cadeira.
Brincalhão como pouca gente, criou um método para classificar as mulheres, tendo como medida os animais. Se a moça era dotada de pernas longas e cintura alta, apelidava de “menina-sapo”. A comparação, hoje, poderia ser vista como algo politicamente não muito correto, mas nos 80 fazia rir. Para cada tipo feminino havia uma fórmula. Em seu coração, o tipo ideal atendia pelo nome de Tininha, a sua Maria da Anunciação Rosário, que era uma espécie de orgulho secreto. Nunca soubemos como a classificava, mas era evidente o quanto a amava muito. Por muito tempo, depois de sua morte, a Tininha freqüentou a Academia e sentava sempre no mesmo lugar, na platéia, diante da cadeira do seu Bira. Não foram poucas as ocasiões em que a flagrei olhando para o espaço vazio, como se estivesse buscando a presença do amado ausente.
Uma vez, minha saudosa amiga professora Maria Annunciada Chaves me disse que o ruim de viver muito é que se vai vendo os amigos partirem. Ainda não vivi muito, apenas 61 anos, mas sinto que ainda falta tanta coisa para aprender, que necessito de longos anos pela frente. Deus sabe o quanto.
Claro que jamais acumularei o conhecimento de José Ubiratan Rosário, mas, pelo menos, posso dizer que o mundo ficou melhor, porque ele existiu entre nós.
(jcparis1959@gmail.com)